Entre outubro de 1940 e novembro de 1945, o escritor alemão Thomas Mann contribui com os esforços da propaganda de guerra aliada, transmitindo boletins pela rádio inglesa BBC a todo o território europeu.
O vale-tudo durante a guerra
Ouvintes alemães!
Quem hoje novamente fala a vocês teve o privilégio de fazer alguma coisa pelo prestígio intelectual da Alemanha no decorrer de sua agora longa vida. Fico agradecido por isso, mas não tenho nenhum direito de me vangloriar, pois foi coisa da providência, e não minha intenção. Nenhum artista constrói sua obra para engrandecer a fama de seu país e de seu povo. A fonte da produtividade é a consciência individual, e mesmo que a simpatia que ela desperta venha beneficiar a nação em cuja língua e tradição se baseia, há acaso demais em jogo para que uma pretensão de reconhecimento se justifique. Vocês, alemães, não deveriam, ainda que quisessem, agradecer-me hoje por minha obra! Ela não foi feita por causa de vocês, e sim por uma necessidade pessoal imperiosa.
Mas há algo que verdadeiramente aconteceu por causa de vocês, por causa de minha consciência social e não privada, e diariamente cresce minha convicção de que virá o tempo, e ele está cada vez mais próximo, em que vocês vão me agradecer e me ter em mais alta consideração que meus livros de histórias: é o fato de eu ter alertado vocês, enquanto ainda não era muito tarde, contra os poderes abjetos sob cujo jugo vocês estão hoje atrelados sem amparo e que os estão conduzindo a uma ruína inimaginável através de milhares de crimes. Conheci esses poderes, e soube que nada além de catástrofe e miséria para a Alemanha e a Europa podia crescer de sua natureza indescritivelmente infame, enquanto a maioria de vocês, num deslumbramento hoje já certamente inexplicável para vocês mesmos, julgava que eles trariam ordem, beleza e dignidade nacional. Será que não devemos pensar nas palavras de Goethe sobre a “devota nação alemã que só se sente sublime quando toda sua dignidade foi jogada fora”? Eu também os conhecia, meus bons alemães, e o quanto eram falíveis para compreender qual seria a verdadeira honra e a verdadeira dignidade de vocês; e que, em outubro de 1930, contra a minha natureza, eu tenha subido na arena política e, na Sala Beethoven, em Berlim, sob as interrupções dos gritos nazistas, tenha feito um discurso de que, talvez, um ou outro de vocês ainda lembre, que chamei de “Apelo à Razão”, embora na verdade fosse um apelo a uma Alemanha melhor – isso serve hoje, mesmo que tenha sido inútil, para acalmar minha consciência muito mais do que tudo que alcancei e realizei como artista.
Eu procurava, com minha débeis forças, prevenir o que viria e já estava ali há anos: a guerra – pela qual o mentiroso líder de vocês culpa os judeus, os ingleses, os maçons e sabe Deus quem mais, embora, para qualquer um que quisesse ver, ela fosse certa desde o momento em que eles chegaram ao poder e começaram a construir a máquina com a qual tencionavam destruir a liberdade e a justiça. E que guerra essa em cujos grilhões vocês se contorcem! Uma aventura imprevisível, devastadora e sem esperança, um atoleiro de sangue e crime no qual a Alemanha ameaça naufragar. Como estão as coisas na Alemanha? Vocês acham que nós, aqui de fora, não sabemos tão bem quanto vocês? Embrutecimento e miséria se espalham em torno de vocês. Inescrupulosamente, jovens de 18, 16 anos são oferecidos aos milhares, aos milhões ao Moloch da guerra – não há uma casa na Alemanha que não se lamente por um marido, um filho ou um irmão. O declínio começa.
Na Rússia, faltam médicos, enfermeiros, remédios. Nos hospitais civis e militares alemães, os feridos graves são colocados ao lado de velhos, enfermos e doentes mentais para morrer com gás – de dois a três mil, assim como contou um médico alemão, em uma única instituição. Assim faz o regime que vocifera quando Roosevelt o acusa de querer aniquilar o cristianismo e toda religião e que afirma conduzir uma cruzada da civilização cristã contra o bolchevismo – o bolchevismo do qual ele próprio é apenas uma variação incomparavelmente mais vulgar.A contrapartida cristã dessas execuções em massa por gás são os “dias de acasalamento”, em que soldados de licença são conduzidos a encontros animalescos com jovens da BDM (Associação das Mulheres Alemãs) para produzir bastardos do Estado que possam servir na próxima guerra. Pode um povo, uma juventude decair mais? Horror e injúria da humanidade, por toda parte. Outrora um Herder recolhia, cheio, de amor, as canções populares das nações. Assim era a Alemanha em sua bondade e grandeza. Hoje, só quer saber de assassinar outros povos e raças, de extermínio estúpido.
É preciso ter muita fantasia para propagar via rádio tais notícias populares como “dias de acasalamento”. O outro lado da história pode ser lido no artigo Lebensborn- Fonte da vida – NR
Trezentos mil sérvios foram mortos não na guerra, mas depois da guerra com a Sérvia por ordem dessa escória infame que governa vocês. Vocês sabem das coisas indizíveis que aconteceram e acontecem na Rússia, na Polônia e contra os judeus, mas preferem não saber pelo justificado horror diante do ódio igualmente indizível que atinge proporções gigantescas e que um dia, quando seus homens e máquinas perderem as forças, cairá sobre sua cabeças. Sim, o horror diante desse dia é oportuno, e seus líderes tiram proveito disso.
Eles, que seduziram vocês a cometer todos esses atos vergonhosos, dizem: agora que vocês os cometeram, estão inextricavelmente amarrados a nós; agora vocês devem resistir até o último homem, ou o inferno cairá sobre vocês. O inferno, alemães, veio para vocês quando esses líderes vieram. Ao inferno com eles e todos os seus cúmplices. Então ainda poderão ter salvação, paz e liberdade.
Fonte: www.estadao.com.br