Acredita-se que Wagner buscou em sua obra a mais perfeita junção
do teatro trágico de Shakespeare, da música tocante e turbulenta de Beethoven
e da Filosofia de Schopenhauer
Certa vez, vi um pensador espanhol a dizer que nunca agradeceria suficiente aos céus por ter conhecido Richard Wagner. Diria eu o mesmo. Muito aquém da música belíssima, da riqueza, do heroísmo fulminante, suas trombetas me conduziram à busca pela transcendência e à mais viva compreensão do papel que a arte pode exercer sobre o ser humano.
O testemunho de uma identificação pessoal com o wagnerismo
Wagner bem pode ser considerado como um músico completo, talvez ainda como o mais complexo dos grandes compositores. Para o interessado na natureza humana, uma ponte que tende ao infinito.
Parece-me que há um preconceito bastante notável com relação à obra wagneriana e mesmo com sua pessoa em particular. Há quem o recuse de primeira, sem sequer conhecê-lo, como se Wagner representasse algo negativo, até mesmo odioso. Ainda que muitos anos o separem do III Reich alemão, as críticas, precipitadas em sua grande maioria, são feitas de tal modo se Wagner de fato lá tivesse estado, como um soldado do Front, um camisa parda ou um SS.
“Repõe o sonho o que o dia consome;
à noite, quando a vontade sucumbe,
afloram forças libertas
acompanhando divinos pressentimentos.
Murmuram bosque e rio, e através da alma esperta
um relâmpago cruza o céu de azul de noite.
Dentro e fora de mim:
é o mesmo: somos um, o mundo e eu”. [1]
No ano de 2008, em que se comemoravam os 125 anos da morte de Richard Wagner, uma tradução “Das Judentum in der Musik” foi lançada por intermédio da Associació Wagneriana de Barcelona. Em uma passagem, o mesmo tradutor afirma que o wagnerismo não deve ser descoberto enquanto diversão ou passatempo, mas visto como um caminho necessariamente trágico e heróico, a caminho da redenção. Contudo, o que mais chama a atenção é a forma com que se põe em cheque a polêmica questão entre Wagner e os judeus, expressa da seguinte forma:
“Wagner não somente foi um artista extraordinário, mas um homem de valor e sinceridade absolutas, nunca teve medo da miséria ou do desprezo se era para seguir seu caminho e seu ideal de redenção da humanidade através da arte. Não foi ‘antijudeu’ no sentido pessoal ou globalizante, pois teve amigos íntimos judeus, amigos para com os quais tinha um profundo apreço; inclusive tais amigos compreendiam que as denúncias de Wagner não se destinavam a ‘todos os judeus’, senão contra um poder financeiro e midiático, dominador dos povos. Por isso, em seu enterro, o féretro de Wagner foi levado aos ombros tanto de um judeu, como o diretor Hermann Levy, como de um futuro nacional-socialista da NSDAP, como Wolzogen”. [2]
Ainda que por vezes se detenha em detalhes pouco relevantes, entre os quais se percebe uma interpretação quase próxima da má fé, o denso estudo “Wagner as man and artist”, do consagrado Ernest Newman, é uma grandiosa fonte a ser consultada, que retrata o universo melodioso e revelador do compositor germânico.
Wagner fora sempre muito susceptível ao encanto feminino, à moda do princípio goethiano, onde o Eterno Feminino nos conduz aos céus, à imortalidade.
Assim como com Liszt, Beethoven e Goethe, com Wagner também me ocorre uma identificação pessoal: a facilidade de se apaixonar. Contudo, as entrelinhas da obra wagneriana demonstram que não se trata de uma carência ou uma emotividade propriamente ditas, mas de um espírito que caminha de regresso à própria origem, à eternidade, onde o encanto feminino é como uma passagem. A busca platônica pelo Graal – o infinito. Assim como podia oscilar suas paixões, oscilavam também determinados posicionamentos pessoais seus, pois, para Newman, “Wagner não conhecia nenhuma lei da vida, senão a realização total de si mesmo a cada momento”.
Entre suas características gerais mais marcantes, está o fato de que, assim como com Schiller, Wagner custeou suas primeiras obras. Durante doze noites consecutivas, leu seu “Ópera e Drama” aos amigos próximos. [3]
Mesmo um Nietzsche, antes de se revoltar contra o músico e o homem que fora Wagner, admitiu, em certa feita, que Wagner teria sido o maior beneficiador de sua vida:
“Por falar nas coisas que me produzem prazer na vida, creio que devo expressar uma ou duas palavras de gratidão para algo que me refrescou da forma mais cordial e profunda o possível. Inquestionavelmente, eu me refiro às minhas relações com Richard Wagner. Todas as outras relações que sustentei com outros homens foram tratadas com muita rapidez, mas não poderia apagar de minha vida, a nenhum preço, os dias que passei em Tribschen: aqueles dias cheios de confidências, de alegria, de intuições sublimes e instantes profundos. Não sei o que Wagner terá significado para os demais, mas nem uma só nuvem sua obscureceu nosso céu”. [4]
Sob influência de Feuerbach, em 1872 Wagner publica seu ensaio “Arte e revolução”, onde, de antemão, defende a tese de que a arte não é mais que a expressão da alegria de uma comunidade liberta – tendo, portanto, de ser acessível a todos. [5] Neste sentido, criticava a postura alemã, onde, à diferença dos gregos, os teatros eram frequentados apenas pelos nobres. “Com os gregos”, dizia ele, “a arte vivia na consciência pública; em nós alemães, vive apenas na consciência dos indivíduos privilegiados”.
Richard Wagner, em uma escultura de Arno Breker
É em “Arte e revolução” que se deposita a semente, da qual posteriormente surgirá a idéia de “arte do futuro”. Esta obra de arte, cujo elemento primordial seria o teatro fundamentado na tragédia, deveria compreender, na verdade, todos os gêneros artísticos possíveis. Assim se faria da arte, algo semelhante ao princípio de um homem total: um homem de intelecto (fala), coração (som) e corpo (gesto). Isto tudo leva Newman a propor que em Wagner, o destacável poeta-músico,
“Shakespeare e Beethoven estenderam suas mãos um ao outro; se as criações marmóreas de Fídias se convertessem em carne e sangue vivas; se a natureza, ao invés de se ver representada em um quadro mesquinho das paredes do egoísmo, se desprendesse de modo exuberante, em um amplo cenário do futuro, comovida pelo cálido alento da vida; somente então, no companheirismo de seus camaradas artistas, encontraria redenção o poeta”.[6]
Sendo um poeta-músico, fez-se presente a escrita na vida do compositor de Leipzig. “A prosa”, observa Newman, “constituía uma verdadeira necessidade para Wagner; era a pureza necessária de seu intelecto, sem a qual as emoções não podiam funcionar a pleno rendimento”. Por isso, diz-se que se acaso não tivesse dedicado um tempo tão exclusivo à escrita, o universo musical wagneriano teria sido significativamente mais amplo – contudo, menos complexo. Seria apenas música, como o fizeram tantos e tantos outros.
O que dizer da relação entre Wagner e Beethoven, senão acreditar que Wagner foi um filho espiritual de Beethoven? Não apenas o espírito de sua obra redentora nascera a partir do caminho que Beethoven toma com a IX Sinfonia. Dir-se-ia ainda mais: que se hoje reconhecemos ao mestre de Bonn, isto se deve a Wagner.
Wagner teria declarado que em “uma tarde”, assistira a uma execução duma Sinfonia de Beethoven: “Durante a noite tive um acesso de febre, fiquei doente e, após o restabelecimento, tornei-me músico”. [7] Contudo, Wagner em Beethoven floresce na IX Sinfonia, quando se tem o apogeu da mensagem beethoveniana, onde uma proposta sonora densa e encantadora se conecta aos versos de Goethe.
Beethoven e a redenção, em forma de música, que inspirou a Wagner
O compositor de Leipzig teve mesmo o cuidado em elaborar um escrito sobre os quatro movimentos dessa Sinfonia, passando inicialmente de “un combat de l’âme luttant pour la conquête de la joie contre l’opression de cette force hostile que s’insinue entre nous et le bonheur terrestre” a uma “sombre désespoir que la joie ne peut effleurer atteint aux paroxysme et semble envelopper l’univers”; [8] de um segundo movimento onde uma voluptuosidade selvagem atua como se “poussés par le désespoir, nour fuyions devant lui, à la poursuite d’un bonheur noveau”, que, apesar dos pesares, é também “strictement limité comme le but de notre course inlassable vers la felicité”, e onde, ao fim do movimento, “nous sommes ramenés à cette scéne de bien-être apaisé que nous avons déja rencontrée”. Wagner percebe pureza no terceiro movimento, uma pureza que fala direto aos corações, que logo transforma “le sentiment de révolte, l’impulsion sauvage de l’âme accablée de désespoir en un sentiment de tendre mélancolie”, onde tudo termina como uma lembrança, onde tudo acaba
“a la sérenité de la joie succède maintenant son délire; nous pressons le monde sur notre coeur; des cris de ravissement, des transports d’allégresse emplissent l’âme comme le tommerre des nuées, comme le mugissement dela mer qui, dans leur flux éternel et leurs vibrations bienfaisantes, vivifient et conservent la Terre, pour la joie des Hommes auxqueles Dieu la donna, afin qu’ils y soient heureux: ‘Millions d’êtres, embrassez-vous…’”. [9]
Não fora senão isto tudo que levaria Newman a descrever Wagner da seguinte forma:
“Wagner era uma dessas personalidades dinâmicas fortes que depois de desaparecer, fazem com que o mundo nunca volte a ser o que era antes; um integrante de um minúsculo grupo de homens que vivem a cavalo entre um mundo velho e um novo, que se separam por um golfo que se faz cada vez mais intransitável; um dos pouquíssimos que são capazes de preencher as veias de toda uma civilização com um novo princípio de vitalidade, cuja cócega não somente sentem os espíritos mais esquisitos, senão também os mais correntes: um principio novo, do qual será impossível escapar, aceite ou não o homem. É provável que Wagner seja a única figura da história da música da qual se possa dizer tal coisa”. [10]
E diante disso, eu me pergunto: Wie sollte ich nicht meinem ganzen Leben dankbar sein por ter conhecido ao wagnerismo? Como não haveria de estar grato?
Newton Schner Jr., um modesto wagneriano dos tempos modernos
[1] Trecho do poema “Solene música do entardecer”, de Hermann Hesse.
[2] WAGNER, Richard. Los textos malditos de Richard Wagner. Ediciones Sieghels. Argentina, 2008.
[3] NEWMAN, Ernest. Wagner: el hombre y el artista. Taurus Ediciones. Madrid, 1982.
[4] NEWMAN, Ernest. Op. Cit. Pg. 170.
[5] Wagner ainda complementa: “Se a obra de arte grega compreendia o espírito de uma bela nação, a obra de arte do futuro deverá compreender o espírito de uma humanidade livre, que não terá qualquer relação com a barreira das raças”.
[6] NEWMAN, Ernest. Op.Cit. Pg. 211.
[7] ANGEBERT, Jean-Michel. Hitler e as religiões da suástica. Livraria Bertrand. Portugal, 1973.
[8] WAGNER, Richard. Beethoven. Gallimard. Paris, 1937. Traduit d’allemand par Jean Louis Crémieux.
[9] WAGNER, Richard. Op. Cit. Pg. 78.
[10] NEWMAN, Ernest. Op. Cit. Pg. 242.
Artigo publicado pela primeira vez em nosso Portal a 08/11/2014.
Ótimo artigo!! Que falta fazia os escritos do Schner!!