Ayres Britto
ex-Presidente do Supremo Tribunal Federal
Diante de sua aposentadoria compulsória do judiciário brasileiro, o Ministro Carlos Ayres Britto teve alguns de seus mais marcantes julgamentos destacados pela nossa imprensa isenta e imparcial (risos). Junto aos polêmicos temas debatidos no Supremo – demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, a interrupção da gravidez de feto anencéfalo, a liberação de pesquisa com células-tronco embrionárias e o reconhecimento das uniões homoafetivas. Também valeria destaque especial a análise de Ayres Britto sobre a acusação de racismo contra o editor gaúcho Siegfried Ellwanger. O inteiro teor do voto de Ayres Britto é uma verdadeira aula de liberdade de expressão, merecendo destaque suas explanações a partir do ponto 87.
Abaixo mostramos a íntegra do voto do Ministro Ayres Britto no julgamento do Habeas Corpus de Ellwanger. Destaque especial para a análise do mérito, a partir do item 30.
Voto do Ministro Carlos Ayres Britto
HABEAS CORPUS 82.424-2 RIO GRANDE DO SUL
RELATOR: MIN. MOREIRA ALVES
PACIENTE: SIEGFRIED ELLWANGER
IMPETRANTES: WERNER CANTALÍCIO JOÃO BECKER E OUTRA
COATOR: SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
V O T O
(VISTA)
Introdução
O SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO: Por haver solicitado vista do processo, durante a sessão plenária do dia 26 de junho do fluente ano, trago à douta apreciação dos meus dignos pares o voto que adiante verbalizo.
2. À guisa de introdução acerca da tramitação do feito, no entanto, permito-me anotar que o presente habeas corpus tem por paciente o Sr. Siegfried Ellwanger Castan. No pólo contrário, ou seja, na condição de parte nominalmente apontada como coatora, comparece o augusto Superior Tribunal de Justiça. E como objeto da impetração, pedido de desfazimento da cláusula de imprescritibilidade que se encontra averbada à condenação penal imposta a ele, paciente, pela 3a Câmara Criminal do egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.
3. Atento à natureza e ao conteúdo das peças judiciais acostadas ao remédio heróico do habeas, assim como aos documentos constitutivos do processo originário (por mim requisitado), relembro que tudo começou pela aceitação de denúncia do Ministério Público sul-rio-grandense contra o paciente, sob a acusação do crime de “incitar e induzir a discriminação racial”. Denúncia que se fez em acatamento a representação de terceiros (um deles enquanto representante da Federação Israelita do Rio Grande do Sul), em data de 12 de novembro de 1991 e assim nuclearmente vocalizada pelo digno Promotor de Justiça:
“Segundo o incluso inquérito policial, o denunciado Siegfried, na qualidade de escritor e sócio dirigente da Revisão Editora Ltda., situada na Rua Voltaire Pires, n° 300, conj. 02/11, nesta cidade, de forma reiterada e sistemática, edita e distribui, vendendo-as ao público, obras de autores brasileiros e estrangeiros, que abordam e sustentam mensagens anti-semitas, racistas e discriminatórias e com isso procura incitar e induzir a discriminação racial, semeando em seus leitores sentimentos de ódio, desprezo e preconceito contra o povo de origem judaica” (fls. 18, sem os caracteres negritados).
4. Em seqüência, o Órgão Ministerial Público arrolou as obras que o paciente escreveu ou editou, delas pinçando os trechos que entendeu caracterizadores do mencionado delito de discriminação racial (fls.18/23). Todavia, como o paciente veio a ser absolvido pela juíza substituta Bernardete Coutinho Friedrich, da sentença absolutória recorreram os assistentes da acusação. Recorreram e obtiveram êxito na sua irresignação, acrescento, visto que o ato sentencial monocrático veio a ser totalmente reformado pela unanimidade dos membros da referida Câmara Criminal do colendo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. E confirmado esse último aresto, enquanto peça condenatória do paciente, pela quase totalidade dos ministros que formam a egrégia “Quinta Turma” do Superior Tribunal de Justiça STJ (a única discordância ocorreu pelo voto do ilustrado ministro Edson Vidigal).
5. De lembrar, por importante, que as doutas manifestações do Ministério Público também não primaram pela irrestrita convergência. Enquanto o órgão promotorial da primeira instância terminou por requerer a absolvição do réu (tanto que nem recorreu da sentença absolutória), os outros agentes ministeriais que atuaram nas supervenientes instâncias judicantes insistiram na tipicidade penal da conduta do ora paciente.
6. Prosseguindo neste retrospecto, consigno que a ação criminal teve por calço jurídico-positivo o art. 20, caput, da Lei nº 7.716/89, com a redação da Lei nº 8.081, de 21 de setembro de 1990. O mesmo e único fundamento, por sinal, em que se louvou a multicitada Câmara Criminal (fls. 28) para reformar a sentença de 1a instância e condenar o paciente a 2 (dois) anos de reclusão, com direito a sursis pelo prazo de 4 (quatro) anos. E sem nenhum acréscimo, supressão ou modificação por parte da colenda Quinta Turma do STJ quanto àquele embasamento jurídico-positivo condenatório.
7. Aqui, nesta Casa Maior da Justiça Brasileira, o processo chegou pela mais desembaraçada via do habeas corpus, conforme anunciado nas primeiras linhas desta anotação prévia. Impetração, essa, recebida como “instrumento substitutivo de recurso ordinário” e que já foi conclusivamente relatada pelo eminente ministro Moreira Alves; tendo Sua Excelência votado, como sabido, pelo deferimento do heróico remédio. E assim procedeu o erudito relator, em consideração ao juízo comprovadamente objetivo (porque científico) de que não há raças humanas. É dizer: “não sendo, pois, os judeus uma raça, não se pode qualificar o crime por discriminação pelo qual foi condenado o ora paciente como delito de racismo, e, assim, imprescritível a pretensão punitiva do Estado”. No que o preclaro Ministro terminou por acolher o próprio fundamento do habeas, consistente na afirmação de que discriminar o judaísmo é crime, sim, porém não chega a ser manifestação de racismo. E não chega a ser manifestação de racismo, precisamente porque não há raças humanas, assim no plural. O que existe é tão-somente uma raça humana, uma única raça humana, em oposição às raças que proliferam no reino dos animais irracionais.
8. Não logrou adeptos imediatos, contudo, o consagrado ministro Moreira Alves. 6 (seis) não menos ilustrados membros desta Corte Suprema já pronunciaram seus votos de forma diametralmente oposta à pretensão do paciente. É falar, os eminentes ministros Maurício Corrêa, Celso de Mello, Gilmar Mendes, Nelson Jobim, Ellen Gracie e Cezar Peluso entenderam praticado o crime de racismo, sim, contra o povo judeu; mesmo reconhecendo, a una voce, a cientificidade daquele juízo da inexistência de raças humanas. E se crime de racismo houve, não há por que desconstituir a cláusula de imprescritibilidade de que a trata a Constituição Federal.
9. Se me fosse possível avançar um minimum minimorum de comentário sobre a contradita de todos os seis preclaros ministros, falaria: a) inicialmente, da proposição jobiniana de que a tese do insigne relator do habeas deixaria sem núcleo semântico, sem conteúdo significante o próprio dispositivo constitucional que faz da prática do racismo um crime (pois é de todo evidente que não se pode dar a um dispositivo constitucional-originário nenhum tipo de interpretação nulificadora da própria norma por ele veiculada); b) em segundo lugar, traria à tona o juízo de que toda forma de anti-semitismo é incontornável manifestação de racismo (tal como exposto nos fundamentados votos dos ministros Maurício Corrêa, Celso de Mello e Carlos Mário Velloso), pela mais direta, recente e dolorosa vinculação desse gravíssimo preconceito ao holocausto de que foi vítima o povo judeu, no transcurso da Segunda Grande Guerra; c) comentaria, enfim, a sólida convicção dos ministros Ellen Gracie, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Cezar Peluso quanto ao fato de que o paciente ultrapassou todas as fronteiras da sua liberdade de manifestação do pensamento para invadir o proibido território do racismo anti-judaico, seja por escrever, editar e reeditar o livro “Holocausto Judeu ou Alemão?” (com o subtítulo de “Nos Bastidores da Mentira do Século”), seja por reeditar e expor à venda livros de autores que enveredaram pelo mesmo infectado pântano do anti-semitismo. Sendo, por conseqüência, irretocavelmente justa (“adequada” e rigorosamente conforme “o princípio da proporcionalidade”, ponderou o ministro Gilmar Mendes) a pena que lhe fora aplicada pela egrégia 3a Câmara Criminal da Corte de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Com a averbação de imprescritibilidade e tudo.
10. Este o breve retrospecto de uma causa, Senhor Presidente, que talvez como nenhuma outra me possibilitou conhecer o apurado desvelo profissional e a fulgurante inteligência de todos os 6 (seis) ministros que tive a honra de citar pelos respectivos nomes. A cujo refinado labor é de se ombrear as peças já produzidas pelo insigne relator Moreira Alves, pelo douto Procurador Geral Cláudio Fonteles, e pelo assim chamado amicus curiae Celso Lafer (autor do alentado parecer que tão bem impressionou os ministros Celso de Mello e Carlos Mário Velloso e que também tive a honra profissional e o deleite pessoal de ler).
O manejo de princípios constitucionais contrapostos
11. Passando ao esboço do meu voto, propriamente, observo —- como certamente os doutos ministros já observaram, mesmo sem explícita verbalização —- que toda esta demanda nos coloca no epicentro do instigante e atualíssimo tema da contraposição de princípios jurídicos. É como dizer: os fatos ensejadores da denúncia e trazidos ao conhecimento deste STF pela via constitucional do habeas corpus são fatos para cuja subsunção o magistrado tem que aplicar alguns modelos normativo-principiológicos em estado de fricção e que chegam a descambar para uma recíproca excludência; ou seja, o decididor tem que trabalhar com determinadas normas de conteúdo axiológico e índole constitucional que, no caso, parecem demandar interpretação maniqueísta ou de radical exclusão de uma delas.
12. Com efeito, seja qual for o ângulo jurídico de análise da questão de fato, o decididor se vê na insólita dificuldade de aplicar certos comandos jurídico-positivos em concreto estado de tensão, pressionando, cada um deles, por uma exclusiva ocupação de espaço. E o que é mais trabalhoso e delicado é que se trata de comandos expressionais daqueles princípios que, de tão excelsos, a Constituição incluiu nos próprios fundamentos da República Federativa do Brasil (como desenganadamente são os protoprincípios da dignidade da pessoa humana, da livre iniciativa e do pluralismo político). E perpassantes, além do mais, do preâmbulo e dos objetivos fundamentais da mesma Federação Republicana.
13. Como sobejamente conhecido, os princípios constitucionais ostentam essa característica da inter-referência e ela se dá tanto por complementação (um princípio se colocando enquanto sub ou serviente de outro) quanto por oposição. E é quando o caso concreto suscita a aplicabilidade da inter-referência por oposição que o magistrado nem sempre tem a chance do ajustamento ou compatibilização deôntica. Sua opção é por vezes radical, no sentido de ter que excluir a incidência de um dos princípios em confronto.
14. Esse fenômeno da inter-referibilidade por oposição é de maior ocorrência —- força é dizê-lo —- no curso das relações que os particulares travam entre si e com o propósito de exercitar direitos e garantias individuais. Que são direitos e garantias imediatamente referidos ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e defluentes de uma sociedade culturalmente pluralista; ou seja, de uma sociedade que se compõe de grupos humanos culturalmente díspares, formados por seres dotados de estrutura biopsíquica também personalíssima. Vale dizer, pessoas de mundividência e gosto pelas coisas verdadeiramente únicos. Por isso mesmo, pessoas que se fazem detentoras de uma jurídica autonomia de vontade para materializar as suas insimilares convicções políticas e filosóficas, de parelha com suas também insimilares preferências estéticas, profissionais, sexuais, religiosas, culinárias, etc., pois somente assim é que o ser humano se realiza enquanto ser humano mesmo (“ninguém é igual a ninguém”, “cada cabeça uma sentença” e “gosto não se discute” são ditos populares que muito bem exprimem a incrível capacidade que tem a natureza de jamais se repetir). Assumindo o Direito Positivo, de conseguinte, o inevitável risco de ver uma dada autonomia de vontade a se antagonizar com outra, por abuso de uma delas.

“ninguém é igual a ninguém”, “cada cabeça uma sentença” e “gosto não se discute”
são ditos populares que muito bem exprimem a incrível capacidade
que tem a natureza de jamais se repetir
15. Este o fadário, a assumida destinação de um Direito que faz da convivência entre os contrários um dos mais expressivos conteúdos da Democracia (Tobias Barreto dizia ser o Direito o modus vivendi possível). Sabendo, de antemão, que a abstrata legitimação do uso de uma vontade individual pode resvalar para a danosa prática da abusividade. Mas também por antecipação convencido da maior valiosidade da premissa democrática de que não é pelo receio do abuso que se vai proibir o uso daqueles direitos e garantias em que mais resplende o valor da Liberdade. Há fórmulas compensatórias de resolução de conflitos e a ponderação jurisdicional dos interesses em jogo é a mais estratégica de todas elas. Com o quê a sociedade pode recobrar o seu necessário estado de harmonia.
16. Ciente e consciente de tal sobredificuldade metodológica, antecipo que todo o meu esforço operacional será o de demarcar o campo de lídima expressão de cada princípio em estado potencial de atrito, a fim de evitar o concreto sacrifício de um deles. Se não me for possível fazê-lo, também adianto que a minha preferência recairá sobre essa ou aquela norma-princípio que melhor assegure a aplicabilidade de outras que também tenham tudo a ver com o preâmbulo da Constituição, os fundamentos (incisos de I a V do art. 1° da C.F.) e os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (incisos de I a IV do art. 3° da mesma C.F.). Dito pela forma contrária, o meu crivo de seleção prestigiará esse ou aquele princípio que, no caso vertente, menos sacrifício imponha aos demais. Demais princípios, reafirmo, nos páramos da mesma santíssima trindade do preâmbulo da Constituição e dos fundamentos e objetivos fundamentais da Federação Republicana brasileira.
Questão de Ordem
17. Assim postas as coisas, começo por levantar uma questão de ordem. E digo uma questão de ordem porque o fato a que vou me referir não foi, ao que me parece, até agora processualmente mencionado ou, por qualquer modo, versado. Ele se traduz no seguinte: nem o órgão promotorial de 1a instância, nem os assistentes da acusação, nenhum desses atores processuais originários fez a prova de que o delito em foco se materializou no lapso de vigência do dispositivo legal invocado na denúncia como incriminador da conduta do réu, agora paciente. Quero dizer: nada nos autos atesta que a denunciada prática do crime de racismo se deu após a publicação da Lei federal de n° 8.081, de 21 de setembro de 1990; que foi a lei veiculadora do novidadeiro artigo n° 20, por ela adicionado à Lei penal n° 7.716/89, e cuja redação é esta:
“Art. 20. Praticar, induzir ou incitar, pelos meios de comunicação social ou por publicação de qualquer natureza, a discriminação ou preconceito de raça, religião, etnia ou procedência nacional. Pena de reclusão de dois a cinco anos.”
18. Convém insistir ainda um tanto, para maior clareza da questão de ordem: o pólo processual ativo do processo, na instância originária, tinha o dever de provar que o delito se materializara após a entrada em cena do dispositivo penal increpador. E tinha o dever de provar, porque até a data de vigência da Lei nº 8.081 o preconceito racial enquanto crime não estava associado à sua veiculação “pelos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza”. É só conferir o modo originário como a Lei nº 7.716 foi redigida para de pronto se concluir que dela não constava a ocorrência do delito pela via a que se reporta a lei que lhe deu imediata seqüência temporal (a de n° 8.081). Nova lei, por sinal, qualificadora do crime, naturalmente pelo fato de que “praticar, induzir ou incitar” o racismo “pelos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza” passa a implicar propaganda aberta ou convocação pública para delinqüir. Uma orquestração, destarte, própria de quem não tem sequer o pejo de se assumir como racista, ou de quem se esforça por fazer proselitismo (por hipótese, se alguém faz publicar edital de recrutamento de pessoas de “boa aparência” e ali mesmo exclui os candidatos de cor, ou portadores de uma nacionalidade em particular, está a incidir em preconceito racial pela forma direta ou pessoal. Mas se vem a público para falar bem desse tipo de prática excludente, ou de outras do gênero, passa a compor um tipo de discurso aliciante que o tangencia para a zona da incitação ou do induzimento, que são práticas indiretas do mesmo e proibido preconceito).
19. Acresça-se que dois outros específicos mandamentos jurídicos jungiam a instância acusadora ao dever de provar que a ação tida por criminosa ocorrera em data posterior à da lei increpadora. São eles:
I – o inciso XXXIX do Magno Texto Federal, assim vernacularmente paramentado: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Estatuição que se traduz no princípio da estrita legalidade penal, particularização que é do genérico princípio da reserva legal, segundo o qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (inciso II do art. 5° da Carta Republicana de 1988);
II – o art. 41 do Código de Processo Penal, na redação de todos conhecida: “A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou os esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol de testemunhas”.
20. Ora bem, de tal inafastável dever não se desincumbiu o pólo acusatório da demanda, venia concessa, conforme se constata pela simples confrontação de datas; ou seja, da confrontação da data de publicação da Lei nº 8.081 (tal publicação é de 24 de setembro de 1990) com as datas de edição e reedição dos livros objeto da ação penal pública, o que resulta é a falta de demonstração da anterioridade da primeira em relação às demais.
21. Realmente, fácil é perceber que:
I – são de 1989 as datas de edição ou reedição dos seguintes livros, objeto da denúncia e apreendidos por ordem judicial: “O Judeu Internacional”, de Henry Ford; “Os Protocolos dos Sábios de Sião”, apostilada por Gustavo Barroso; “Brasil Colônia de Banqueiros”, de Gustavo Barroso; “Holocausto Judeu ou Alemão? – Nos bastidores da Mentira do Século”, de autoria dele mesmo, paciente, sob o pseudônimo de S.E. Castan;
II – não vem acompanhada de nenhuma indicação de data a 3a edição do livro “Os conquistadores do Mundo —- os verdadeiros criminosos de guerra”, que tem por autor o húngaro Louis Marschalko“, mas é de se presumir que tenha sido anterior à data da denúncia, pois o fato é que esse livro, cuja 1a edição é de 1958, já constava da representação em que se louvou o Órgão Promotorial para o ajuizamento da denúncia (e tal representação é de 3 de julho de 1990);
III – finalmente, as outras duas obras (“A História Secreta do Brasil”, 1a reedição, escrita por Gustavo Barroso, e “Hitler, Culpado ou Inocente?”, 1a edição, do escritor Sérgio Oliveira, essas têm data, sim, mas apenas quanto ao ano nelas impresso (que foi o de 1990). Nenhuma referência existe quanto ao mês das respectivas publicações, porém é de se presumir que esse mês tenha sido anterior à data de publicação da Lei nº 8.081 (sem falar que a primeira delas também figurava na citada representação, enquanto a outra, por silêncio do Ministério Público, não comporta exegese que não seja a do in dubio pro reo).
22. Por que a exegese do in dubio pro reo? Pela clara razão de que vigora em nosso Ordenamento Jurídico o princípio da presunção de inocência em matéria penal, todo ele defluente do seguinte versículo da Lex Legum de 1988: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (inciso LVII do art. 5°).
23. É certo que, em contraponto a este equacionamento, alguém poderá dizer que o paciente não apenas editou e reeditou livro próprio e livros alheios. Ele também expôs à venda todas essas obras. Mas a contradita se me antolha descabida. Primeiramente, porque a venda ou comercialização de livros é tão-somente uma conseqüência ou efeito natural das respectivas edições ou reedições (aquela é absorvida por estas). Em segundo lugar, porque essa mesma comercialização faz parte da liberdade empresarial ou liberdade de iniciativa que o Código dos Códigos erige a fundamento da República Federativa e da Ordem Econômica brasileira (a teor do inciso IV do art. 1o e do caput do art. 170, mais o parágrafo único desse mesmo artigo, assim redigidos:
“Art. 1°. (…):
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;”
“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (…)
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”.
24. Acresça-se uma terceira razão em prol da licitude da concreta ação do condenado, ora paciente, que é precisamente esta: a proibição da venda de livros não constava da Lei nº 8.081/90. Ela, proibição de venda, somente foi normatizada pela Lei nº 9.459, de 13 de maio de 1997, e ainda assim para criminalizar um outro tipo de conduta:
“Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos, propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo” (§ 1º do artigo 20).
Que não é o caso dos autos.
25. Outro fundamento aparentemente oponível a atipicidade da conduta do réu, ora paciente, estaria no chamado “crime permanente”. Acontece que não estão presentes os pressupostos ou elementos conceituais desse crime. A uma, porque editar ou reeditar livros é conduta que se perfaz e se exaure com a sua instantânea ocorrência. O empirismo em si do seu desencadear (o que se pode protrair no tempo são os efeitos da conduta, mas aí o que se tem já é a figura distinta do “crime instantâneo de efeitos continuados”). A duas, porque a outra característica do crime permanente é o fato de sua consumação poder cessar pela vontade do agente (caso típico do seqüestro) e o fato é que a pessoa responsável pela concreta edição de um livro já não tem como praticar a respectiva desedição nem impedir a leitura desse livro por eventuais adquirentes (para melhor proveito, na matéria, é de ler a obra “Direito Penal,” vol. 1, Parte Geral, Ed. Saraiva, 23 edição de, 1999, pp. 193/194, de Damásio de Jesus).
26. Este o primeiro anunciado entrechoque de normas constitucionais, todo ele situado na esfera daqueles imediatos direitos e garantias que a Lex Maxima colocou ao serviço do megaprincípio da dignidade da pessoa humana, conforme anteriormente falado. É que o direito de não ser racialmente discriminado é tão direito humano quanto a garantia da licitude da conduta não previamente incriminada por lei. Se se prefere, o delito inafiançável e imprescritível da discriminação racial somente por diploma legal é que tem descritos os elementos de sua completa definição (o Texto Maior de 1988 só não requesta as achegas da lei, em matéria de crime e de pena, quando menciona “a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”, que é o tema do inciso XLIV do art. 5°). Como também por conduto da lei é que se lhe gradua a pena de reclusão a que fica sujeito, consoante ressai da seguinte voz de comando: “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei” (inciso XLII do art. 5°). Saltando à evidência que a lei aqui referida é a lei em sentido formal —- de elaboração congressual, portanto —- e necessariamente prévia à conduta de um eventual acusado de praticar a discriminação por racismo; pois é certo que tal previedade legal já consta de um inciso anterior do mesmo art. 5° do Magno Texto Federal, que é o inciso XXXIX, ainda há pouco transcrito (“não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”).
27. A conseqüência lógica desse encadeado visualizar das coisas é que, sem previedade legal, o crime não se materializa. Assim como não se materializa o respectivo apenamento. E por tudo isto é que não tenho como fugir, Senhor Presidente, Senhores Ministros, Senhor Procurador Geral da República, —- não tenho como fugir do reconhecimento da carência de justa causa para o aforamento da ação penal pública.
28. Que o fecho deste segmento de idéias coincida com a lembrança de que a garantia constitucional da necessidade de edição de lei formal, e lei prévia, tanto para incriminar alguém quanto para infligir-lhe castigo, é uma das mais brilhantes e atualizadas páginas do constitucionalismo liberal. É preceito figurante do art. XI, 2, da Declaração Universal dos Direitos do Homem (“Ninguém poderá ser condenado por qualquer ação ou omissão que, no momento em que foram praticadas, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional (…)” e princípio constitucional do processo, aqui no Brasil, com a majestade própria daquelas relações sobre as quais se pode dizer que “a forma é da substância do ato”. Ou diante das quais Von Ihering pôde ajuizar que “a forma é inimiga do capricho e irmã gêmea da liberdade”. Tudo a inadmitir desprezo ou postergação, mesmo diante de conduta sinalizadora dessa “perversão moral” que é o racismo, tal como adjetivado pelo eminente ministro Cezar Peluso.
29. É o quanto me basta para, resolvendo a questão de ordem, conceder o habeas corpus. Concessão de ofício, claro, pela inovação da causa de decidir: a atipicidade da própria conduta do paciente, à época dos fatos noticiados na denúncia. E como se trata de impedir, aqui, a consumação de nulidade absoluta (retroatividade da lei penal para prejudicar o réu), penso que nada impede o deferimento do writ no próprio instante processual do seu julgamento, nos termos do § 2° do art. 654 do Código de Processo Penal.

“…não tenho como fugir do reconhecimento da carência de justa causa para o aforamento da ação penal pública”
Mérito da Causa
O regime constitucional do racismo
– O racismo enquanto crime
30. Quanto ao mérito da demanda, propriamente, impõe-se-me reconhecer que o seu enquadramento jurídico passa, antes de tudo, pela fixação dos contornos constitucionais do racismo; ou seja, antes mesmo do exame da citada legislação infraconstitucional, é preciso ver o modo pelo qual a Constituição versou, por conta própria, o tema da discriminação racial. Sabido que esse vexatório assunto faz parte das mais cuidadosas preocupações da Carta Republicana do Brasil.
31. Com efeito, há um regime diretamente constitucional do racismo. O tema é de berço normativo nobre e muitos são os aspectos que ressaem dessa normatividade jurídica de primeiríssimo escalão; afigurando-se-me de boa metodologia focar o assunto a partir do próprio dispositivo que tipifica o racismo como crime. É o sobredito inciso XLII do art. 5°, agora literalmente reproduzido: “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”.
32. De pronto, atina-se com a relevância constitucional do assunto. Dos 77 (setenta e sete) dispositivos em que se desdobra o art. 5° da Carta Maior de 1988, apenas 3 (três) são diretamente criminalizadores de conduta. São os incisos XLII a XLIV, e um deles, justamente, faz da prática do racismo a sua hipótese de incidência . Logo, mais que genérica ou anódina ilicitude, mais que uma caracterizada contravenção penal, o racismo é crime. E crime tão inafiançável quanto imprescritível e ainda sujeito à pena de reclusão. Tudo por expressa vontade da Constituição.
33. Há mais o que dizer, pois no rol dos comportamentos que o Texto Magno categoriza como preconceito (inciso IV do art. 3°) o único deles assim tachado de criminoso foi o racismo. Como um pouco mais para a frente voltarei a comentar.
– A significação coloquial do substantivo “prática”
34. Por enquanto, mais importante me parece conhecer do núcleo semântico ou base significativa do substantivo feminino “prática”. É o mesmo que dizer: a palavra de que se valeu o inciso transcrito foi recolhida do vocabulário comum do povo, ou, em sentido oposto, a ela foi emprestado um significado da própria técnica jurídica? Somente explicável, então, à luz de um vocabulário jurídico-positivo?
35. A resposta já se patenteia. Nenhum outro elemento da própria Constituição concorre para negar ao termo “prática” aquele sentido de moeda corrente vernacular. Aqui, como em tantas outras passagens do seu falar normativo, a Constituição-cidadã primou por uma linguagem usual, comum, desde sempre conhecida daquela massa anônima de que falava Gilberto Freyre no monumental ensaio de sociologia e antropologia brasileira que é o livro “Casa Grande e Senzala”.
36. De todos os ramos jurídicos, sem dúvida o Direito Constitucional é o que mais se utiliza de uma estrutura popular de linguagem, conforme, aliás, tive oportunidade de escrever já no distante ano de 1982, na boa e inesquecível companhia do jurista e pensador Celso Ribeiro Bastos. Dissemos, na ocasião:
“Quanto ao seu revestimento lingüístico de traço coloquial —- já foi assinalado —-, a Constituição se revela como uma carta de nacionalidade ou estatuto de cidadania, na medida em que dirige o seu discurso normativo a todos os membros da sociedade política —- e não apenas a determinados segmentos sociais ou categorias profissionais —-, de modo inicial.
Instrumento inaugural de regulação das vivências coletivas, a Lei Suprema é redigida, em certa medida, à feição de cartilha de primeiras letras jurídicas, incorporando ao seu vocabulário aquelas palavras e expressões de uso e domínio comum. É a primeira voz do Direito aos ouvidos do povo, seu principal endereçado normativo, compondo um discurso que será tanto mais recepcionado quanto se utilize de instrumental terminológico já conhecido”(em “Interpretação e Aplicabilidade das Normas Constitucionais”, pp. 24/25, Editora Saraiva).
37. Era assim também que doutrinava o tão portentoso quanto pranteado Geraldo Ataliba, pois é dele próprio esta lapidação de jóia de pensamento: “A interpretação constitucional deve ser feita de maneira diversa da do direito ordinário, porque sabemos que no direito constitucional a exceção é o emprego de termos técnicos. Na norma constitucional, havendo dúvida sobre se uma palavra tem sentido técnico ou significado comum, o intérprete deve ficar com o comum, porque a Constituição é um documento político; já nos setores do direito ordinário a preferência recai sobre o sentido técnico, sendo que a acepção comum só será admitida quando o legislador não tenha dado elemento para que se infira uma acepção técnica” (em “Elementos de Direito Tributário”, p. 238, Editora Revista dos Tribunais, ano de 1978).
– O substantivo “prática” enquanto comportamento ambivalentemente concreto e abstrato
38. Pois bem, é ainda no senso comum das pessoas que o verbete “prática” assume o inequívoco sentido de fazer, agir, dizer, produzir e tudo o mais que se traduza no fato de o ser humano sair de si mesmo. Atuar. Vir à tona da existência. Experienciar a vida, enfim, sem a sutileza da distinção (e aqui desfaço uma cogitação que cheguei a verbalizar na sobredita sessão plenária do dia 26 de junho transato) —- sem a sutileza da distinção entre a postura abstrata e solitária do escrever e a postura concreta e social do agir, pois ambas as formas de extrapolação do puro psiquismo humano são materializações de conduta; quer dizer, tudo é comportamento, interação, empirismo existencial, trajetória de vida em recíproca interferência.
39. Por esse prisma do mais generalizado sentido da palavra, serve-se melhor ao desígnio constitucional de combater o preconceito racial. Cumpre-se bem mais o imperativo hermenêutico da efetividade da Constituição. Pois a tipificação do racismo passa a ocorrer tanto por palavra quanto por ação. Palavra escrita, ou oral. Ação que signifique realizar um trabalho, produzir uma obra, exteriorizar uma opinião, mimetizar ou gestuar uma comunicação. Só escapa mesmo da increpação, lógico, o ato psíquico de pensar. Uma vez que “pensar não ofende” —- é o que se diz amiúde —-, desde que o pensador permaneça mudo ou evite gesticulação inequivocamente reveladora de propósito relacional discriminador.
40. Não se fale, porém, que esse modo mais à solta de interpretação padece do defeito de solapar a base significativa de duas espécies constitucionais de liberdade: a liberdade de manifestar o pensamento (inciso IV do art. 5°, sob esta conhecidíssima dicção: “É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”) e a de expressar a atividade intelectual, artística, científica e de comunicação (inciso IX do mesmo art. 5°, vocalizado por esta forma: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”). Assim não se argumente, porquanto ilusório é esse temor de ver privados de espaço de incidência os dois estelares modelos de autonomia de vontade. Como passo a demonstrar, de imediato.
– A diferenciação entre “uso” e “abuso” da liberdade de expressão
41. Que a Lex Maxima declara e garante a liberdade de expressão, é juízo que ninguém desconfirma. Liberdade tanto para manifestar o pensamento (exteriorizá-lo, portanto) como para expor o fruto da atividade artística, intelectual, científica, ou de comunicação. Ponto pacífico. Uma coisa, porém, é a liberdade de que desfruta quem quer que seja para dizer o que quer que seja (em poema antigo, cheguei a trocadilhar que a liberdade de expressão é a maior expressão da liberdade), ou, ainda, para trazer à ribalta suas incursões pelos domínios da Arte, do Intelecto, da Ciência, ou da Comunicacão; outra coisa, bem diferente, é o titular dessas liberdades ficar imune a resposta por eventual agravo a terceiros, ainda que não intencionalmente cometido. Ou, pior ainda, deixar de responder pelos abusos em que vier a incorrer, deliberadamente.
42. Deveras, o que a Lei das Leis garante a cada ser humano é um espaço apriorístico de movimentação: o uso da respectiva autonomia de vontade para exteriorização do pensamento (vedado tão-somente o anonimato) e da atividade artística, estética, científica e de comunicação. O abuso e o agravo são questões que somente a posteriori se colocam. E para combatê-los é que a Lei Republicana prevê dois específicos dispositivos: a) o inciso V do art. 5°, segundo o qual “é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem”; b) o inciso X do mesmo art. 5°, a saber: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
43. Agravo e abuso passam a ser ventilados, portanto, já no plano da reação de outrem; sendo que o agravo suscita o exercício de um direito de resposta que nem depende de processo de apuração de transbordamento da originária autonomia de vontade. O abuso, no entanto, pressupõe a constatação processual do transbordamento daquela primitiva autonomia de vontade. Um transbordamento que só é transbordamento por violar uma outra e alheia autonomia de vontade, também juridicamente prezada. Mas a premissa da Constituição é uma só: não é pela possibilidade de agravo a terceiros, ou de uso invasor da liberdade alheia, que se vai coibir a primitiva liberdade de expressão (que se define, assim, como liberdade absoluta, nesse plano da incontrolabilidade da sua apriorística manifestação. Sendo que esse fraseado em si – “liberdade de expressão”- alcança as duas tipologias de liberdade: a liberdade de manifestação do pensamento e a liberdade de ação no quadripartite domínio intelectual, científico, artístico e de comunicação.
44. Pontue-se bem a diferença: do ângulo da autonomia de vontade de quem fala, escreve, gesticula, ou ainda de quem produz uma obra de natureza artística, intelectual, científica, ou de comunicação, o que se tutela de forma até absoluta é o direito mesmo de fazer algo ou passar para outrem u’a mensagem, um recado, uma obra. Transformar em ação ou coisa objetiva algo até então subjetivo. O que se traduz no exercício do direito de não sofrer impedimento ou censura prévia nesse ato mesmo de agir ou de dirigir-se a terceiros. E uma vez operado esse transpasse de um momento psíquico de vida humana para um momento fático de vida social, realizada fica essa espécie de autonomia de vontade. Se se prefere, é no instante mesmo de materialização da autonomia de vontade que o direito subjetivo se realiza e a Constituição resta plenamente respeitada. Mas ele, direito subjetivo, tem no próprio instante de sua realização o exaurimento do seu conteúdo; quero dizer, não incorpora a si a força de bloquear posturas reativas de terceiros eventualmente prejudicados nas respectivas autonomias de vontade.
45. Veja-se então o outro ângulo, que é o prisma de quem se sente vítima de agravo ou de abuso no exercício da primeira modalidade de autonomia de vontade. Agora, o que se protege é: primeiro, o direito de resposta; segundo, o direito de desencadear um processo de apuração de abusividade, com o fito de responsabilização tanto civil quanto penal (se for o caso) do agente abusivo; pois é óbvio que a tutela penal de certos valores —- como a honra pessoal e a não-submissão a práticas racistas, por hipótese —-, implica a possibilidade de acesso a uma jurisdição especificamente criminal. Para além, portanto, daquele singelo direito de resposta e até mesmo da prefalada reparação civil.
– A conciliação entre o uso da liberdade de expressão e o direito de não sofrer discriminação
46. Não que o sujeito pego em abusividade fique, a partir daí, proibido de reexercitar sua liberdade de pensamento ou de manifestação intelectual, artística, científica, ou de comunicação. Não! A abusividade se questiona e se afere é caso-a-caso ou a cada nova manifestação de autonomia do primeiro tipo de vontade. Reiniciando-se o ciclo de reclamação, apuração, constatação e apenamento do abuso, acaso empiricamente repetido. Porque somente assim é que se conciliam o direito de uso, de uma banda, e o direito de não sofrer abuso, de outra. É rematar: como não se pode afastar aquela premissa constitucional de que não é pela possibilidade do abuso que se vai coibir o uso, o direito de não voltar a sofrer abuso se resolve mesmo é pela repetição do sancionamento do infrator reincidente (pois, ainda que ele se encontre em regime de aprisionamento ou custódia estatal, ainda assim permanece titular do direito à liberdade de expressão).
47. As coisas se encaixam. Se o titular da primeira autonomia de vontade pode bater às portas do Judiciário para não sofrer constrangimento apriorístico ou de antemão, valendo-se do lapidar princípio constitucional de que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (inciso XXXV do art. 5°), não tem, entretanto, o poder de impedir que terceiros também se valham do mesmo dispositivo maior para reclamar da violação da autonomia de vontade deles, ofendida, precisamente, por efeito da excessiva manifestação da primeira.
48. Os dois momentos de licitude são estes: a) o primeiro sujeito de direito não pode ser obstado, por antecipação, quanto à sua liberdade de manifestar ou de voltar a manifestar um pensamento, ou, ainda, de desempenhar ou tornar a desempenhar aquelas outras quatro atividades (a literária, a científica, a artística e a de comunicação); b) correlatamente, o segundo sujeito de direito também não pode ser obstado em sua pretensão de punir o autor da conduta extravasante, quantas vezes o extravasamento vier a conspurcar a sua (dele, segundo sujeito de direito) autonomia de vontade.
– As excludentes constitucionais da abusividade
49. Três comportamentos, todavia, são especialmente normados como excludentes da abusividade. Comportamentos ditados por imperativos de consciência e que são, pela ordem com que a Lei Maior a eles se referiu: a crença religiosa, a convicção filosófica e a convicção política. Matéria que também faz parte da altissonante nominata dos direitos e garantias individuais, a saber: “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção política ou filosófica, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação social alternativa, fixada em lei” (inc. VIII do art. 5º).
Logo, de fora a parte essa ressalva que se lê na parte final do dispositivo, a liberdade de expressão ganha um decidido reforço constitucional. Desde que utilizada, evidente, numa das três explicitadas esferas da mais íntima subjetividade humana: a crença religiosa, a convicção filosófica e a mundividência ou cosmovisão política.
50. É bom repetir: com essas três excludentes de abusividade no exercício da liberdade de manifestação do pensamento e das sempre lembradas atividades artística, científica, literária e de comunicação, a Constituição homenageou três aspectos fundamentais da ontologia humana: o anseio de infinito (que é a busca da religação da criatura ao Criador), a inata curiosidade pela produção de um tipo tão especulativo quanto universalizante do saber (núcleo duro de toda investigação filosófica) e, finalmente, a formulação de doutrinas e teorias que tenham na estruturação e funcionalização otimizadas dos Estados e dos Governos o seu específico objeto (fórmula simplificada de compreensão da política enquanto ciência e enquanto arte de governar).
Mas com este acréscimo de idéia: a convicção política de que trata o Código dos Códigos é aquela que materializa o fundamento republicano-federativo de nome “pluralismo político” (inc. V do art. 1º).
De conseguinte, atividade que ora se contém no fechado conteúdo programático de uma determinada agremiação partidária, ora se exprime numa concepção estritamente pessoal do modo optimum de estruturação e funcionalização da pólis (espaço ideal de materialização das primárias relações entre governados e governantes e ainda entre os próprios Estados e Governos soberanos).
A significação também coloquial do substantivo “racismo”.
51. Neste novo tópico de tentativa de revelação da vontade constitucional, ajuízo que também o termo “racismo” foi usado em sentido coloquial. Não foi outra a intenção da Lei Maior senão a de pinçar o vocábulo do próprio linguajar corrente da população. Até como condição de facilitada compreensão e cumprimento de um preceito a que ela, Constituição, emprestou a mais forte coatividade.
52. Esse núcleo semântico popular figura em dicionários da língua portuguesa e até de outros idiomas. Consultei muitos deles e verifiquei a ambivalência do termo. Ora ele é usado para se referir à discriminação das pessoas de cor negra, ora é utilizado para se reportar à discriminação desse ou daquele povo de mais pronunciada diferenciação histórico-cultural. Não diferenciação antropológica ou por caracteres físicos, visto que, à luz da Antropologia (como à luz da Genética, da Geografia Humana, da Biologia ou de qualquer outra Ciência Natural), os homens não se compartimentam em raças; mas, repise-se, uma diferenciação histórico-cultural, resultante de um tipo especial de predomínio como que atemporal: o predomínio do sangue sobre o território.
É aclarar: seja qual for o território estatal onde se encontrem certos povos de ancestralidade comum, o elemento de identidade ou da mais íntima agregação dos respectivos membros é tal ancestralidade mesma. Não o vínculo jurídico de nacionalidade que venha a decorrer das leis vigentes naquele território de domínio de um particular Estado. Nesse sentido, é de se conferir, por amostragem:
I – “[….] O racismo, portanto, não é uma ideologia que tem somente os ‘negros’ como objeto, o que nos permite levar em conta a observação de que os judeus e irlandeses, por exemplo, foram objeto de ideologias racistas [….]”; (Cashnore, Ellis. Dicionário de Relações Étnicas e Raciais, São Paulo, Summus, 2000, p. 461)
II – “[….] A ideologia racista, retomada pelos chefes do nazismo, resultou no anti-semitismo [….] As teorias racistas não ficaram limitadas à Alemanha; haviam sido utilizadas pelos eslavos, antes de 1914, para fundamentar o pan-eslavismo. Assumiram grande importância nos EUA com o problema dos negros [….]”; (Grande Enciclopédia Delta Larousse, Rio de Janeiro, Ed. Delta, p. 5.648) III – “[….] Se, através da História, as teorias racistas foram elaboradas sobretudo contra os negros e judeus, não se pode decerto afirmar que só eles têm sido visados [….]”. (Bobbio, Norberto; Matteucci, Nicola; Pasquino, Gianfranco. Tradução Carmen C. Varriale, Gaetano Lo Mônaco, João Ferreira, Luís Guerreiro Pinto Cacais e Renzo Dini. Dicionário de Política, Brasília, Ed. UNB, p. 1.060)
53. Veja-se bem: enquanto vocábulo vulgarmente dicionarizado, o racismo é visto como discriminação ou preconceito. Mas uma discriminação ou preconceito que principalmente abarca, na sua esfera de concreta incidência, duas distintas realidades: a realidade dos negros e a realidade daqueles povos (organizados ou não em Estado soberano) que mais se distinguem dos outros por um pronunciado perfil histórico-cultural. É a via de cognição que passo a palmilhar, sem mais tardança.
A ambivalência do termo “racismo”
54. Já ficou assentado, linhas atrás, que a norma normarum vocalizou o termo “racismo” em duas oportunidades (a respeito das relações internacionais do Brasil e no capítulo dos direitos e deveres individuais e coletivos). Porém é preciso aduzir que em nenhum desses dois momentos o legislador constituinte se deu ao trabalho de explicitar que tipo de sujeito de direito se encaixaria no âmbito pessoal de incidência da normatividade constitucional. Falou de racismo, e só. Como se a palavra fosse auto-explicável quanto àquelas pessoas a quem se visou proteger da sua (dele, racismo) deletéria prática.
55. Num primeiro golpe de vista, o intérprete fica propenso a sinonimizar racismo e raça, pelo fato de que este último vocábulo “raça”:
I – foi literalmente citado pelo inc. IV do art. 3º do Código Supremo, de par com outras modalidades de preconceito “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”;
II – foi também literalmente apartado do vocábulo “cor”, no inc. IV do art. 3º da CF, impelindo o exegeta a deduzir que preconceito de raça e preconceito de cor são figuras jurídicas distintas.
56. Ora, se o Código Político Republicano fala de preconceito de raça e ainda separa esse preconceito daquele referente à cor, então parece lógico inferir que racismo não é preconceito de cor, mas de raça. Unicamente de raça.
57. Acontece que esse tipo semanticamente restritivo de interpretação conduz ao paradoxo de negar a um só tempo:
I – a história mesma do Brasil, toda ela tão discriminadora dos negros que chegou ao cúmulo de fazer da escravidão desses nossos irmãos um instituto jurídico. E que perdurou do início do segundo século do descobrimento do País até a redentora data de 13-05-1888 (daí por que a última lei federal sobre o racismo, a de nº 9.459/97, é datada de 13 de maio);
II – as particularidades do processo constituinte de discussão dos temas afinal positivados na Constituição-cidadã de 1988, sabido que toda a regração atinente ao racismo se deu por inspiração do Movimento Negro e específica proposta dos Deputados Federais Carlos Alberto Caó e Benedita da Silva, ambos de pele negra (conforme, aliás, noticiado nos lúcidos votos dos Mins. Moreira Alves e Maurício Corrêa). O mesmo Deputado Carlos Alberto Caó, ajunte-se, que tomara a exitosa iniciativa da própria Lei nº 7.716/89;
III – a linguagem popular de ontem e de hoje, aqui nesta nossa “Terra de Santa Cruz”, que tem o racismo como palavra imediata e preponderantemente significativa de preconceito de cor, e cor negra, enfatize-se.
58. É isto mesmo. Excluir a negritude do raio de aplicabilidade do comando constitucional vedatório do racismo é pensar e sentir a partir de uma realidade que não é a brasileira. Certamente não. É não ter ouvido falar sequer do citado livro Casa Grande e Senzala, do Sociólogo Gilberto Freyre; ou de poemas como Vozes d’África, do vate Castro Alves; ou de ensaios como O Povo Brasileiro, do Antropólogo Darcy Ribeiro, páginas de cuja leitura ainda escorrem o sangue, o suor e as lágrimas de uma gente que, tão-somente pelo azeviche da sua pele, era tratada como coisa. Pior ainda, era tratada como se fosse fera, bicho, animal. “Alimária do universo” ou “pasto universal”, como escrito no poema castrense Vozes d’África”. E de cujo incomparável drama fala e chora e freme e urra de dor e de indignação o monumental poema O Navio Negreiro, do mesmo vate sublime da Bahia,
como se lê destes versos que ainda ecoam no tribunal das nossas consciências:
“E existe um povo que a bandeira empresta/ P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!/ E deixa-a transformar-se nessa festa/ Em manto impuro de bacante fria!/ Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta/ Que impudente na gávea tripudia?!…/ Silêncio!… Musa! Chora, chora tanto/ Que o pavilhão se lave do teu pranto…
“Auriverde pendão da minha terra,/ Que a brisa do Brasil beija e balança,/ Estandarte que a luz do sol encerra,/ E as promessas divinas da esperança…/ Tu, que da liberdade após a guerra,/ Foste hasteado dos heróis na lança,/ Antes te houvessem roto na batalha,/ Que servires a um povo de mortalha!…
“Fatalidade atroz que a mente esmaga! / Extingue nesta hora o brigue imundo/ O trilho que Colombo abriu na vaga,/ Como um íris no pélago profundo!/ … Mas é infâmia demais… Da etérea plaga/ Levantai-vos, heróis do Novo Mundo…/ Andrada! Arranca este pendão dos ares!/ Colombo! Fecha a porta dos teus mares!”
59. Numa frase, o racismo de que trata a Constituição não é excludente da realidade dos negros. Não pode ser. É termo exigente de um tipo histórico-cultural de interpretação que atenta para a mais viva história do povo, da geografia, das instituições e dos costumes do Brasil. E que, se desprezado, terminaria por liberar o crime de discriminação contra ela, a negritude, daqueles dois mencionados fatores de inibição: a inafiançabilidade e a imprescritibilidade. É, enfim, desconsiderar o que realisticamente ensinou Darcy Ribeiro, com estas palavras: “A característica distintiva do racismo brasileiro é que ele não incide sobre a origem racial das pessoas, mas sobre a cor da pele”. (em O Povo Brasileiro, Ed. Companhia das Letras, p. 225)
60. Urge reconhecer, porém, que é também da tradição brasileira falar-se de raça para além da referência aos negros. Embora com bem menor constância e crueldade (ou até, por vezes, de forma elogiosa), a palavra é usada como signo distintivo de outros segmentos humanos, ora na sua virginal condição de “nativos” (situação dos índios), ora tidos como apátridas (caso dos ciganos), ora procedentes de um outro Estado-nação. Donde nos soar como familiares as expressões “colônia alemã” do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, “colônia italiana” e “colônia japonesa” de São Paulo, “colônia espanhola” da Bahia e assim avante.
61. É nesse contexto brasileiro de multirracialidade para além da cor da pele (ou seja, não apenas em função da negritude) que os ciganos, por exemplo, têm experimentado o gosto amargo da discriminação; pois o seu atávico nomadismo tem servido de escuso pretexto para serem tachados de cabalistas, endogâmicos, desprofissionalizados e pouco afeitos a regras mínimas de higiene corporal e coisas assim desprimorosas. Modo social de ver que também estigmatiza os nossos índios, não raras vezes injustamente citados como indolentes, vulneráveis a doenças endêmicas e epidemias, indisciplinados para o trabalho e pouco dispostos a permutar suas primitivas crenças politeístas pela doutrina monoteísta e cristã da Igreja Católica Apostólica Romana.
62. Um último fundamento em prol dessa abrangência dúplice do termo “racismo” está em que o nosso legislador constituinte laborou num período em que mais fortemente permaneciam na ciência dos doutos e no imaginário popular duas tristemente célebres ignomínias mundiais:
a) o Apharteid que se abatia sobre a população negra da África do Sul;
b) a sistemática perseguição genocida que o nazismo empreendera contra o povo judeu que habitava os territórios sob ocupação alemã, no curso da Segunda Grande Conflagração.
A distinção e ao mesmo tempo a identificação possível entre “raça” e “racismo”.
63. De toda maneira, duas afirmativas aparentemente contraditórias tomam corpo:
a) racismo não é preconceito de raça, propriamente, se a palavra “raça” for considerada
à luz de qualquer das chamadas Ciências Naturais;
b) racismo é preconceito de raça – como não? –, se o vocábulo raça for encarado enquanto modo de falar, sentir e praticar da população nacional.
Logo, enquanto modo histórico-cultural de ser brasileiro. Que é um modo ambivalente, porquanto incorporador dos negros e dos grupos humanos ainda há pouquinho referidos. Grupos, a seu turno,
juridicamente vinculados a um só Estado soberano, ou difusamente domiciliados em muitas outras dessas unidades estatais. Pouco importa.
64. Se no inc. IV do seu art. 3º a Constituição de 1988 distinguiu entre o preconceito de raça e o preconceito de cor, foi para falar de raça no restrito sentido de grupo ou segmento humano de
características histórico-culturais próprias. Inconfundíveis com a de qualquer outro. Mas identificados, todos eles, por uma cor não-negra de pele; isto é, pela cor da pele sem tonalidade negra.
Fonte: Conjur