Família de camponeses da região de Ramallah
entre 1900 e 1910
O termo árabe “al Nakba”, traduzido como “a catástrofe”, traz a conotação de uma miséria profunda e se refere à expulsão de 750 mil palestinos do território onde foi criado o Estado de Israel em maio de 1948.
Mais recentemente, os estudos da área começaram a empregar o termo “Nakba continua” para enfatizar que o processo de expulsão, que teve seu auge naquele 1948, continua até hoje. Em 1967, outros 350 mil palestinos foram deslocados.
Fora dos períodos de guerra, o deslocamento forçado ocorre por outros meios, seja através de leis e dispositivos discriminatórios, seja através de da invasão e do roubo de casas palestinas por colonos radicais – evento recorrente em Jerusalém oriental.
O primeiro a chamar atenção para o caráter contínuo da Nakba não foi um historiador, mas Elias Khoury, escritor libanês e ex-combatente da liberdade (“fida’i” em árabe). Ferido aos redor dos 20 anos, trocou o rifle pela caneta e passou a coletar fragmentos de histórias palestinas e a tecer narrativas que registram o longo e ininterrupto sofrimento desse povo, bem como sua resiliência.
A concomitância e a intrínseca relação entre o ápice da Nakba e a criação do Estado de Israel gerou enormes disputas historiográficas. A versão dos chamados velhos historiadores israelenses foi retratada pela imagem de um Davi israelense contra um Golias árabe.
O jovem Estado de Israel, nascido das cinzas do Holocausto europeu, teria enfrentado uma terrível força árabe, cujo desejo seria eliminar o país e lançar os judeus ao mar.
A guerra de 1948, segundo tal narrativa, seria uma guerra de defesa. Os palestinos teriam fugido a mando de seus líderes para dar lugar à entrada dos exércitos árabes.
Um dos primeiros historiadores palestinos, Aref al Aref, era no ocasião o comissário-assistente do distrito de Ramallah e foi encarregado de receber o negociador da ONU, o conde sueco Folke Bernadotte, em julho de 1948, pouco após a queda e massacre de Lydd e Ramla.
Sessenta mil habitantes dessas duas cidades tinham sido forçados a uma marcha de morte em que centenas deles pereceriam desidratados e exauridos antes de chegar a Ramallah. O conde Bernadotte foi informado pelos oficiais israelenses de que os palestinos fugiram a mando de seus líderes.
Aref al Aref conta que ele prontamente levou o conde Bernadotte para encontrar alguns desses líderes, para ouvir seus relatos, nas cavernas onde tinham se refugiado. Foram encontros como esse que certamente fizeram com que Bernadotte reportasse à ONU que “nenhum acordo será justo e completo se não for garantido o reconhecimento do direito de os refugiados árabes voltarem para suas casas, de onde foram desalojados”.
O conde Bernadotte foi assassinado poucos meses depois pelo grupo Lehi, comandado na época por Yitzhak Shamir, que passaria de terrorista procurado pelas autoridades inglesas a primeiro-ministro de Israel em 1983.
O mito do êxodo voluntário dos palestinos perdurou por três décadas, não obstante os relatos de Folke Bernadotte, Aref al Aref e do historiador Walid Khalidi, que, na década de 1950, foi o primeiro a comprovar sua falsidade com pesquisas em arquivo.
Como se alegava que as altas lideranças árabes haviam emitido ordens pelo rádio para que os palestinos fugissem, Walid Khalidi revirou o acervo das gravações radiofônicas árabes de 1948, mantido no Museu Britânico, em Londres, onde não encontrou nenhum registro nesse sentido.
O personagem Adam, do mais recente romance de Elias Khoury publicado no Brasil, “Meu nome é Adam” (editora Tabla), pergunta, muito pelo contrário: por que não fugiram?
Cerca de 15 mil palestinos morreram na Nakba de 1948, e foram registrados mais de 30 massacres como o de Deir Yassin, ocorrido em 9 de abril daquele ano, e o de Tantura, caso investigado por Teddy Katz, aluno do historiador israelense Ilan Pappé na Universidade de Haifa, que, depois de defender sua dissertação de mestrado em 1998, foi pressionado pela direção da faculdade a alterar suas conclusões.
Na década de 1980, surgiu uma onda de publicações acadêmicas dos chamados novos historiadores israelenses, que, mais de duas décadas após os historiadores palestinos a quem ninguém deu ouvidos, também refutarem a velha narrativa sionista do êxodo voluntário. Fizeram-no principalmente a partir de arquivos nacionais e militares israelenses abertos 30 anos após 1948.
Um novo entendimento foi produzido pela pesquisa do historiador israelense Benny Morris, ao redor de 1987, comprovando que os aproximadamente 750 mil palestinos que se tornaram refugiados em 1948 tinham sido, de fato, expulsos.
Caía por terra, definitivamente, a versão do êxodo voluntário. A discussão, no entanto, passou a girar em torno dos motivos da expulsão. Morris, após titubear, chegaria à conclusão de que expulsão foi consequência inelutável da guerra de 1948, motivo pelo qual foi duramente criticado pelo cientista político judeu norte-americano Norman Finkelstein, que chamou a tese de Benny Morri de “o meio termo feliz”, já que reconhecia a expulsão, mas negava a motivação.
Vários autores, palestinos e israelenses, como Nur Masalha e Avi Shlaim, fizeram então importantes contribuições ao debate historiográfico e ao processo de desconstrução da mitologia sionista. Contudo, o próximo grande avanço historiográfico viria com o resultado da publicação, em 2006, do principal livro de Ilan Pappé, “A Limpeza Étnica da Palestina”.
Nele, o autor demonstrou como, nos anos 1940, o Fundo Nacional judaico financiou projeto secreto de mapeamento do território da Palestina, ainda sob o mandato britânico.
O levantamento incluiu os nomes e a localização dos vilarejos, qualidade das terras de cada aldeia, sua produção agrícola, o número de pomares, o número de árvores em cada pomar e até de frutos em cada árvore, as fontes de água, carros e carroças, a população masculina adulta, os nomes de todo suspeito de ser um combatente do movimento de resistência do campo, nome das lideranças e descrição do interior das casas dos “mukhtars” (líderes/prefeitos), indicando que os espiões judeus eram recebidos com a típica hospitalidade árabe no interior das casas.
Os arquivos dos vilarejos, construídos de maneira completamente clandestina ao longo da décadas de 1940, registraram dados extremamente detalhados e cada vez mais relativos às capacidades militares e de resistência dos residentes árabes.
Segundo Ilan Pappé, essa informação foi usada, primeiro, para entender quais terras seriam as mais cobiçadas para a formação do Estado judeu quando chegasse o momento; segundo, que tipo de força de resistência poderia ser encontrada em cada região e em cada aldeia. Os ‘arquivos dos vilarejos” teriam fornecido a base de dados para a elaboração do Plano D (Dalet), o plano de guerra do Exército israelense em 1948 ou, na visão de Pappé, o plano para a limpeza étnica da Palestina.
O termo pode ser entendido como um política deliberada de remoção de populações civis de seus territórios, por meio da violência e do terror, para viabilizar a ocupação por seus perpetradores. Assim difere da ideia de genocídio, ação intencional de extermínio de grupos étnicos-raciais, nacionais ou religiosos.
Os ataques aos vilarejos seriam conduzidos inicialmente pelas milícias sionistas Haganá, Irgun e Lehi, mais conhecidas como bando Stern, e teriam início assim que aprovada a partilha da Palestina em votação da Assembleia Geral da ONU, em 29 de novembro de 1947.
A ação do Haganá em Wadi Rushmiyya, bairro árabe de Haifa, em dezembro de 1947, foi considerada o marco inicial da limpeza étnica da Palestina. A Haganá aterrorizou os 75 mil habitantes árabes da cidade, incitou-os a fugir e explodiu suas casas para que não tivessem para onde retornar.
Segundo Ilan Pappé, a primeira fase da limpeza étnica foi realizada de dezembro de 1947 a março de 1948, período marcado por ataques ainda esporádicos das milícias sionistas e episódios de resistência, emboscadas e contraofensivas palestinas. Em março, foi finalizado o referido Plano Dalet, alterando e acirrando as características do conflito.
Esse plano foi elaborado com base nos dados reunidos nos arquivos dos vilarejos e traçava as regiões que o movimento sionista deveria tentar conquistar para além das fronteiras designadas pela ONU.
Determinava também os métodos a serem empregados: segundo Pappé, cercar e bombardear vilarejos e núcleos populacionais, atear fogo a casas, propriedades e bens, expulsar os moradores, demolir suas casas e, finalmente, plantar minas nos destroços para impedir o retorno dos moradores expulsos. Cada unidade paramilitar recebeu relação específica de vilarejos e bairros que seriam seu alvo.
O Plano Dalet era a quarta e última versão de planos anteriores que tinham descrito apenas vagamente como a liderança sionista pretendia lidar com a presença de tantos palestinos na terra que o movimento nacional judeu reivindicava. Nas palavras de Pappé, “o quarto e último traçado dizia clara e inconfundivelmente: os palestinos têm de sair”.
Para Walid Khalidi, o objetivo do plano foi tanto quebrar a resistência palestina quanto criar um fato consumado que nem a ONU, os Estados Unidos ou os países árabes conseguiriam reverter. Isso explica, diz Khalidi, a velocidade e a virulência dos ataques aos centros populacionais árabes.
À medida que o plano militar era executado, dezenas de milhares de palestinos seriam forçados a marchar, levando apenas as roupas do corpo, formando rios de refugiados que inundaram os países árabes fronteiriços na esperança de, em breve, retornar.
Uma das principais e mais carismáticas lideranças da resistência palestina, Abd al-Qadir al-Husseini foi morto na batalha de Al-Qastal em abril de 1948. O segundo líder, Hassan Salameh, que conduziu a resistência camponesa “al-jihad al-muqaddas”, caiu na batalha de Ras al-Ayn, em junho de 1948. A derrota palestina foi selada independentemente do posterior ingresso dos países árabes na guerra.
Os países árabes votaram contra a resolução 181 da ONU, que determinou a partilha da Palestina. Jamais concordaram com a instauração do mandato britânico (administração civil britânica que operou de 1920 a 1948) e, assim como os palestino, não aceitavam que uma porção dos territórios árabes fosse entregue para o movimento sionista.
Assim que declarada a fundação do Estado de Israel, em 14 de maio de 1948, ingressaram na guerra. O objetivo era, alegadamente, impedir a criação do Estado sionista. Na prática, boa parte das tropas enviadas eram irregulares, com voluntários mal armados e mal treinados, que tinham por objetivo acudir ao apelo dos irmãos palestinos.
A exceção era a Jordânia, com pretensões de anexar as terras férteis da margem ocidental do rio Jordão. A monarquia hachemita tinha o maior exército árabe da época e, na avaliação de Walid Khalidi, não fosse por ela e pela participação do Egito, os palestinos teriam perdido todas suas terras em 1948.
Israel foi criado em 78% do território da Palestina histórica, não nos 52% designado pela ONU. Nessa porção majoritária do território da Palestina histórica, permaneceram apenas cerca de 150 mil palestinos. A Faixa de Gaza recebeu 200 mil refugiados, cujos descendentes representam 70% da população atual. Outros 550 mil palestinos fugiram principalmente para a Cisjordânia, a Jordânia, a Síria e o Líbano.
Salman Abu Sitta, expulso de Be’er Sheva aos dez anos, refugiou-se com a família em Gaza e depois foi para Londres, onde se doutorou em engenharia civil. Ele mapeou os 530 vilarejos palestinos esvaziados, destruídos e eliminados pelas invasões das milícias sionistas e das Forças de Defesa de Israel, de finais de 1947 até o armistício de 1949, e demonstrou que é falso o argumento de que não há espaço para o retorno dos refugiados palestinos às suas terras.
Dado que os historiadores palestinos foram largamente ignorados, foi a partir da pesquisa apresentada por Ilan Pappé em “A Limpeza Étnica da Palestina” que se formou uma nova compreensão acerca da Nakba.
Não seria mais o caso de dizer que a expulsão dos palestinos existiu, mas em decorrência da guerra, nem que ela foi um objetivo sistematicamente perseguido apenas durante a guerra, mas que a guerra foi iniciada no dia seguinte à aprovação da partilha da Palestina pela ONU para realizar um plano que previa a desocupação para a criação de um Estado étnico e majoritariamente judeu.
Desnecessário dizer que a tese de Ilan Pappé desagradou profundamente o establishment sionista. O historiador trocou a Universidade de Haifa pela de Exeter, no Reino Unido, mas não deixou de fazer enorme sucesso entre os israelenses que lutam pela conquista dos direitos palestinos e acreditam que devem encontrar formas menos segregacionistas e mais compartilhadas de viverem juntos, do rio ao mar.
Como dizia Edward Said, nenhum povo quer ter que olhar para trás e reconhecer os horrores da sua própria história. Ao mesmo tempo, dizia ele, somente o reconhecimento dos sofrimentos mútuos – dos judeus no Holocausto e dos palestinos na Nakba – poderá gerar a reparação e os elos necessários para uma vida em comum. Enquanto a Nakba continua e se agrava, o reconhecimento da catástrofe apenas começa.
Arlene Clemesha
Professora de história árabe da USP
Folha de São Paulo, 26 de novembro de 2023.
Reconheço aquela terra como Palestina, não pelo apelido israel dado por ladrões e assassinos.